(ou "Meu Improviso Segundo")
Já faz algum tempo que remexo minha taça de profiterolis a fim de disfarçar em quanto o vigiava. Vi exatamente quando ele entrou na loja. Era difícil não reparar naquele cara alto de tipo forte, pele bronze e cabelos longos presos em um rabo. Como se há não bastasse ser lindo, ainda exibia aos quatro cantos um magnífico sorriso, invejável de tamanha felicidade. Sorriso inclusive grande demais para alguém que passaria horas sozinho neste café-livraria. Ele foi ate a estante, apanhou dois livros, um drama de Shakespeare e uma comedia de Millor Fernandes, e os comprou. Em vez de sair ele foi para a cafeteria, se sentou sozinho em uma mesa no canto e começou a ler.
Alguns minutos se passaram. O sorvete de creme que estava na minha taça já avia derretido, mais eu ainda estava lá, apenas observando aquele rapaz. Ele ria tão alto da comedia que era impossível não reparar. Antes mesmo que eu pudesse terminar meu sorvete, ele tinha acabado o primeiro livro e já partia para o drama: Trabalhos de Amor Perdidos. Conhecia este livro como a palma da minha mão.
A esta altura do campeonato era impossível negar que aquele rosto já fazia muito mais comigo que simplesmente chamar atenção. Acho que todos das mesas ao redor devem ter notado que eu usava o menu como um escudo, como uma torre de observação. E ele lá, já devia estar acabando o primeiro ato... E eu não agüentava mais, tinha que falar com ele...
Por um estante vi sua boca se movendo, tentei entender o que era... De repente me dei conta! Monologo final do segundo ato! Exatamente na parte onde o Armado fala “Chego a venerar o próprio solo vil em que os seus sapatos, mais vis ainda, guiados pelos pés, que são vilíssimos, se locomovem...”. Podem achar estranho que eu saiba bem o texto, mas é que já ensaiei ele. Mas alem disso peço que notem o que eu notei: a peça tem 5 atos, ele esta no segundo, e acabando. Tenho que bolar algo rápido para falar com ele.
Puis-me a pensar enquanto acabada de comer a calda de chocolate. Primeiro pensei em bater na mesa dele “sem querer”, mas seria obvio demais... Então pensei em simplesmente parar ao seu lado e perguntar o nome do livro... Não. Denunciaria logo a minha intenção... Perguntar o que ele achou? Tentar falar que já fiz aquele texto? Todos estes subterfúgios são bons, mas não tenho coragem para executá-los... Ou melhor, são todos bons para a ficção, mas duvido que funcionem na vida real...
Mas não era mais hora para pensar! Acho que alguém que já leu Stanislavski tem no mínimo a capacidade de improvisar uma cantada! É ridículo ficar aqui pensando em desculpas, em maneiras de me aproximar! Então vai Alastus, termina logo este sorvete, levanta e vai!!! Tomei a ultima colherada, guardanapo na boca para limpar qualquer sujeira. Arrastei a cadeira, virei... Ele já não estava mais lá...
Na mesa, apenas a xícara de café vazia e um sache de acocar rasgado...