Talvez ficar em casa parecesse até uma idéia promissora, mas na eminência do ócio e da depressão, que já estavam ficando rotineiros, resolvi sair com o meu irmão e uns amigos dele. Meu irmão era um tipo bem diferente de mim no que diz respeito à interesses, educação e inteligência. (Todos dizem que somos extremamente parecidos fisicamente, embora eu discorde.) Mas, por sorte, tinha ótimos amigos. O nosso destino era uma livraria, sentar e tomar café. Já era um compromisso comum, sempre o mesmo lugar, as mesmas pessoas...
Ao chegarmos ao lugar lá estavam quatro rostos parados e sorridentes nos observando. A primeira da esquerda era Roberta, um tipo bem interessante. Ela tinha a frente uma folha de papel onde esboçava um desenho qualquer enquanto conversava e usava óculos com uma armação grossa e rosa. Apesar do sorriso contagiante, ela parecia estar meio apreensiva, pois sua nota do vestibular sairia em breve. Ao lado dela estava a outra garota da mesa, a Juliet. Juliet era francesa de criação, mas já estava a seis anos no Brasil. Isso era ótimo pra mim, pois também falo francês e podia “soltar internas” que ninguém na mesa entenderia. Ela tinha modos exemplares, que muitas vezes ela achava que ofendiam as pessoas ao redor, mas eu adorava isso nela. Seguindo pela mesa, tínhamos o meu primo, Breno. Ele era o menino típico do nosso circulo de amizades. Sua lista de interesses incluíam computadores, shopping, cinema, livros de aventura e dinheiro.
O ultimo dos que lá estavam era Filipe, um garoto bem “peculiar”. Digo isso primeiro por que ele não trans parecia um estilo muito forte, nem por roupa nem por comportamento, e por mais que parecesse forte, lutasse e sempre sorrisse, por dentro estava passando por diversos problemas pessoais. Fiquei sabendo que ele tinha tentado suicídio algumas vezes, mas como ele não fala disso, não me meto. Mas tinha outra coisa de peculiar com ele: O fato de ser o tipo de garoto que dá vontade de abraçar. É impossível não querer ajudá-lo, mesmo sabendo que ele prefere continuar levando tudo sozinho. Talvez não saiba o peso que carrega por que nunca se viu sem ele, ou por que não dívida muito o fardo, mas ele tem o levado até bem.
Sentamos em dois lugares vagos que tinham na mesa. Eu fiquei ao lado do Filipe e da Roberta, meu irmão ficou entre a Juliet e o Breno. Pouco a pouco nos interamos do assunto da vez, que nada mais era do que os livros que estavam pra sair este ano. Juliet tinha na mão um encarte da livraria, e com um lápis que pegou com a amiga que desenhava, foi circulando os livros que ainda não tinha lido e que a interessavam. Roberta falava de um mangá que sairia daqui a dois dias e que estava louca pra comprar. Logo reconheci que ela desenhava o jovens garotos protagonistas do tal mangá (reconheci pois também estava esperando o mesmo lançamento).
Não demorou e a garçonete chegou sorridente, com três menus e os distribuiu entre nos. Filipe estava conferindo a lista comigo e se perdeu, confuso entre as opções. Pediu minha ajuda, e eu gastei uns cinco minutos tentando lhe explicar cada tópico, mas foi inútil, parecia que ele não prestava atenção. Quando a garçonete voltou foi anotando os pedidos um por um.
- Café com creme e uma baguette. – Breno falou apontando no cardápio.
- Capuccino e uma baguette também. – Meu irmão.
- Um pettit gateau com molho de manga. – Acho que nem preciso falar que foi o pedido da Juliet.
- Chá gelado e três cupcakes. Um de morango, outro de cereja e o terceiro... Hum... De chocolate. – Disse Roberta, que era literalmente viciada nestes bolinhos.
- Bem... – Fui pensando com calma enquanto deslizava o dedo pelo menu. – Um expresso grande e uma fatia de torta de baunilha. – Realmente não foi um pedido nem um pouco original, e bem simples comparado aos colegas de mesa, mas eu estava sem muita vontade de comer.
- Eu? Vou querer o mesmo que ele. – Quando olhei pro Filipe, ele estava apontando pra mim. Me assustei a principio, mas como ele estava sem idéia do que comer, pelo menos não ficou sem comer nada. No entanto, se eu soubesse de antemão, teria pedido profiteroles talvez... ou algo mais aprimorado...
Enquanto esperávamos os lanches, continuamos conversando. Roberta e Juliet foram ao banheiro, por insistência da segunda que praticamente arrastou a amiga que relutava pra poder acabar um detalhe no olho do seu desenho. Falei com Filipe que poderia ter dito que eu fazia o pedido dele, porem a minha resposta foi um riso embaraçado com a mão na nuca. Não demorou muito e as garotas voltaram e se sentaram, mas não sei bem por que elas trocaram de lugar. Uma coisa estranha sempre acontece quando duas mulheres vão no banheiro juntas (e elas sempre vão juntas).Porem desta vez parece que nada de mais aconteceu, alem é claro do lapiz de olho da Roberta ter ficado um pouco mais forte, pois ela deve ter retocado no banheiro.
Juliet pegou um pedaço de papel com a amiga e uma caneta de nankin, e começou a rabiscar num pedaço de papel. Enquanto isso eu foliava um livro que tinha pego lá perto, escrito por uma amiga paulista. Ela acabou de escrever, me chamou e pediu minha ajuda com uma coisa de francês que ela não lembrava mais. Eu achei estranho, afinal ela fala isso desde que nasceu, mas me propus a ajudar. Na folha de papel as palavras: “Imaginez que nous débattons de ce qui est écrit ici. Je dois vous demander une chose.” (“Finge que estamos debatendo o que está escrito aqui. Preciso te perguntar uma coisa.”) Me assustei a principio, mas tentei parecer natural. Olhei pra ela e perguntei: “Qu'est-ce qui se passe?” E a pergunta que ela tinha pra fazer era aparentemente boba. Ela perguntou se eu estava namorando. Respondi que não mais, pois tinha saído de um namoro a pouco mais de um mês.
Para a minha surpresa a pergunta seguinte. Se eu estava vendo que o Filipe estava me “olhando”. Sim, este olhando foi reforçado com gestos de aspas. Fiquei pasmo, e quando esbocei me virar pra verificar, numa atitude completamente idiota, ela me advertiu que parasse. Conversamos mais um pouco, porem ela disse que queria só me contar isso. Eu demorei um tempo pra me dar conta, mas fazia sentido sim. Pelas atitudes que ele vinha tomando a tarde toda... Porem ficava a duvida: O que fazer?
Nunca pensei em ficar com ele, mas era inegável que poderia perfeitamente acontecer. Ele é bonito, inteligente, simpático... Espantava-me cogitar algo assim, mas já que estava na situação, não havia outro remédio alem de pensar na melhor atitude e tomá-la o mais rápido o possível. Sei que ele está saindo de um relacionamento complicado, e com uma garota, e pode ser que não passe de carência... Ou ainda, pode ser que não passe de uma serie de coincidências... Não... É real... Basta esperar e ver o que vai acontecer...
Os pedidos chegaram bem a tempo de interromper minha reflexão. Todos foram se servindo, e por incrível que pareça, achei meu pedido muito mais nobre depois que o vi. Era uma linda xícara de porcelana com pintura a estilo portuguesa cheia de café escuro e soltando fumaça. Ao lado um pedaço retângulas médio de bolo claro e bem aerado, com uma pequena flor ao lado, de decoração. Uma mão pousou em meu ombro, e me virei pra ver:
- Isso é que é uma baunilha? – Disse Filipe, segurando a flor que havia tirado do prato. – Sempre achei que elas fossem brancas...
- Não, isso é uma violeta. Flores de baunilha são amarelas e parecem orquídeas, mas o que usamos pra preparar comida são as vagens secas, que são pretas. Elas não chegam a corar o bolo por que se usa muito pouco, pois o cheiro é muito forte. Mas gosto de violetas. Elas são roxas... Amo roxo...
Sorri e ele retribuiu o sorriso. Virei pra voltar a apreciar os detalhes da minha xícara. As pinturas eram pastoris, com fazendas, gado... tudo em um tom de azul muito bonito. O café tinha um cheiro ótimo, mas não gosto dele muito quente, logo iria começar comendo o bolo. Quando fui pegar a talher, notei em meu prato duas violetas, e não mais uma. Olhei para o prato do Filipe e não tinha mais flor nenhuma. Ele estava olhando de lado para mim, fingindo (muito mal) que não estava observado. Sorri e disse obrigado e voltei pro meu bolo.
Como me preocupava muito em estar no assunto da mesa, por mais que o bolo estivesse delicioso, quando todos acabaram eu ainda estava com um terço do meu bolo no prato. Não demorou muito e meu irmão e o Breno foram olhar os livros que eles usariam este ano na faculdade. Filipe já tinha saído a algum tempo pra olhar um livro que queria comprar. Assim ficamos só eu e as meninas na mesa. Esta era a oportunidade certa que Juliet esperava pra falar.
- E ai? Você não vai fazer nada não?
- Eu, fazer o que?
- Que tal começar olhando no fundo dos olhos dele e falando “Aishiteru...” e tascar um beijo nele. – E o pior é olhar pra cara da Roberta e ver que ela está falando serio.
- Eu não posso fazer uma coisa destas! Primeiro que ele é um amigo, segundo por que ele é hetero!!! Não vai rolar, gente!!!
- Alastus! Este menino ta ai a duas horas do seu lado, pensando que ta numa gôndola em Veneza, louco pra ver uma atitude sua. Hetero? Heteros dão flores assim pra outros homens? – Juliet olha fixo em meus olhos. Era inegável ver verdade no que ela falava.
- Bom. Esteja você pronto ou não, seu oujisama vem ai! Juliet, me deu uma vontade de procurar uns DVDs de animes. Vem comigo!!!
Antes que eu pudesse pensar em algo, estava sozinho na mesa... Correção, Filipe logo se sentou ao meu lado, e trazia consigo um livro de Gonçalves Dias. Sorri e perguntei:
- Não sabia que gostava deste tipo de poesia. Por que este livro?
- Queria ler algo pra você, pode ser?
Fiquei gelado. Ele Estava meio embaraçado, como quando decoramos um texto e esperamos horas até ter coragem. Não podia negar um pedido assim, por mais que saiba que possa ser não inocente... A quem estou enganando? Adoraria que ele lesse pra mim. Acenei com a cabeça e ele começou a ler.
Vês como aquela baunilha
Do tronco rugoso e feio
Da palmeira - em doce enleio
Se prendeu!
Como as raízes meteu
Da úsnea no musgo raro,
Como as folhas - verde-claro -
Espalmou!
Como as bagas pendurou
Lá de cima! como enleva
O rio, o arvoredo, a relva
Já tinha relaxado um pouco e me reclinava pra acompanhar no livro o poema. Ele arredou sua cadeira pra perto da minha lentamente, pra me dar uma melhor visão da página amarelada...
Nos odores!
Que inspiram falas de amores!
Dá-lhe o tronco - apoio, abrigo.
Dá-lhe ela - perfume amigo,
Graça e olor!
E no consórcio de amor
- Nesse divino existir -
Que os prende, vai-lhes a vida
De uma só seiva nutrida,
Cada vez mais a subir!
Se o verme a raiz lhe ataca,
Se o raio o cimo lhe ofende,
Cai a palmeira, e contudo
Inda a baunilha recende!
Um dia só! _ que mais tarde,
Exausta a fonte do amor,
Também a baunilha perde
Vida, graça, encanto, olor!
Foi nesta hora que senti que ele estava com a mão por cima do meu ombro e eu como um tolo já estava com a cabeça no seu ombro. Era inevitável... Eu estava me entregando de bandeja... Neste momento meu coração já pulsava como uma bomba relógio... Uma hora ele iria explodir... Estava nos braços de um garoto lindo e doce que me lia lindos versos de Gonçalves Dias, não podia resistir aos meus impulsos de que isso é a coisa mais romântica do mundo e que queria viver isso pra sempre...
Eu sou da palmeira o tronco,
Tu, a baunilha serás!
Se sofro, sofres comigo;
Se morro - virás atrás!
Ai! que por isso, querida,
Tenho aprendido a sofrer!
Porque sei que a minha vida
É também o teu viver.
Ele fechou o livro e olhou pra baixo por um instante... Sabia o que ele queria, mas não sei se deveria... Sei apenas que naquele momento eu também queria... Olhei pra ele, ele me olhava... Coloquei a mão em seu queixo e a subi deslizando lentamente ate a sua nuca... Aproximamos nosso rosto...
Quando todos voltaram o meu café finalmente estava frio.