sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Chardon

     Cheguei ao sitio de meu professor às 10 horas da manha, bem antes que eu planejava. Isso se deu por que eu não esperava que as estradas do sul da França fossem tão boas. Eu tinha acabado de comprar uma Ferrari preta em Fiorano, assim que a loja abriu. Não resisti e acabei quebrando alguns limites de velocidade, presumo eu.


     “De certa forma, jamais pude desfrutar de tanto tempo vago e de tanta mordomia antes de me mudar para a Europa. Sinto-me como nos contos de fada que mamãe me contava quando pequeno. Histórias as quais eu jamais me esquecerei, repletas de flores perfumadas e coloridas, de alegrias, e sobre tudo, como todo conto infantil, com o Príncipe encantado. É realmente difícil acreditar, mas após tantas barreiras vencidas, me vejo na melhor situação possível. Sinto o vento refrescante dos campos, um bom pressentimento pulsando em meu peito e por ultimo e não menos importante o que me trouxe até aqui, a profissão que escolhi me faz hoje, um astrônomo reconhecido por todo o Mundo, mesmo ainda fazendo meu doutorado. Hoje eu sou o que nem em meus melhores sonhos eu poderia imaginar ser e desfruto de uma felicidade inigualável...”
(Sarah Eduarda)

     O campo ao redor da casa era plano, recoberto por um lindo manto roxo de ‘chardon’, cujo cheiro suave inundava o ambiente. Para completar essa paisagem, lá estavam meus anfitriões: Na frente da casa se encontravam cinco pessoas com roupas comuns, todas loiras de olhos claros. O Prof. Renan de Poale, sua esposa, cujo nome não me recordo, mas se tratava de uma dama muito elegante e tipicamente francesa. Além deles, também estavam na varanda os gêmeos Henry e Mary, de 13 anos, e o mais velho, Artur de Poale. Todos me saudaram e foram muito gentis me convidando pra almoçar.
     A casa era ímpar, toda feita em madeira de mogno e acabada em entalhes rústicos. Na parede, um cuco que de hora em hora nos alertava da passagem do tempo, que era muito vagaroso na eminência da noite que nos aguardava. À mesa tínhamos ratatouille, acompanhado de arroz e patê de tupinambor. Comemos todos juntos e Artur foi o primeiro a sair da mesa, com a desculpa que devia voltar a cuidar da plantação de chá. Não demorou muito e todos estavam satisfeitos, porém ainda era cedo para começar a preparar o equipamento para a tão esperada chuva de meteoros.
     Para fazer hora, eu e meu professor saímos e fomos admirar a paisagem, andar um pouco.
     - Trouxe todo o equipamento que irá precisar, Alastus? Se quiser tenho lentes reservas aqui em casa.
     - Não será necessário, professor. Eu trouxe tudo. Barracas, telescópio, jogos de lentes, mapas astronômicos... Acho que tudo que vamos precisar está lá no carro.
-Aí vem um detalhe importante, Alastus. Acho que não vou poder te acompanhar nesse seu trabalho. Eu fui chamado pra observar a chuva junto com os acadêmicos de Roma. Eles estão me aguardando para as oito horas, tenho que sair em breve.
     - Se o senhor ver necessidade eu posso te acompanhar, professor. Essa chuva se repetirá ano que vem, poderemos tirar as fotos do trabalho ano que vem...
     - Não quero que perca esta chance, Alastus! Ainda mais como seu orientador, devo te falar que as condições desta noite estarão bem melhores aqui do que lá na Itália. Quero que tire essas fotos e arrume as suas coisas lá no campo ao norte da casa, onde a plantação abre espaço para uma pequena pastagem. Lá você terá o campo de visão mais livre.
     - Se o senhor insiste, mas saiba que por mim não teria problema de te acompanhar.
Renan olhou em volta e acenou para Artur, que estava cuidando das lindas flores roxas de chá que circundavam a casa. O professor pediu para que o jovem me acompanhasse ate o carro e que me guiasse até o campo onde eu iria ficar, enquanto ele corria para se aprontar pra sair.
     No carro, Artur me mostrava as partes da fazenda enquanto íamos até o lugar marcado. Fiz questão de ir bem devagar para poder admirar a paisagem, que por ser inverno já pendia para o fim do dia.
     - É naquele morro ali que ficaremos. – Disse o jovem apontando para um pequeno relevo que havia na plantação, onde se via um pequeno curral e uma grande área verde de pastagem.
     - Ficaremos? Você ficará também? – Indagou Alastus.
     - Claro!!! Você acha que eu perderia essa noite? Além do mais eu quase sempre durmo por aqui. Adoro este campo à noite. Não vou incomodar?
     - De forma alguma! Adoraria ter a sua companhia. Só não trouxe comida o suficiente, você acha que pode resolver isso?
     - Parfait! Vous pouvez laisser le reste pour moi. Je l'ai eu. Não vejo a hora da noite chegar. Pare ali e me deixe ajudar a descarregar suas coisas.
     Descemos onde ele indicou, perto do curral. Dali ele me ajudou a levar as coisas para um ponto próximo onde eu montaria a barraca. Artur voltou à fazenda em um cavalo que estava no curral e me deixou arrumando as coisa.
     É nessas horas que a mente da gente viaja olhando esse céu, próximo do pôr-do-sol. Nessas horas eu limpo minhas lentes, lustro o canhão do telescópio, afino a sua mira, calculo azimutais e fico pensando nos caminhos que a minha vida pode tomar. Fico pensando que eu podia ficar aí horas contando estas estrelas que surgem aos poucos, mas seria em vão.


     “Sinto cheiro de Chardon. Ah, como tive, tantas vezes, saudades deste lugar. Ali no campo, ao sul da minha inigualável França, não podia fugir de mim. Lá, na extensão daquela planície, admirando as nuvens que abriam caminho para o repousar no horizonte do esplendor, eu me encontrava. 
     Em toda sua exuberância, o sol se escondia tímido, para dar lugar à chuva de meteoros que viria tornar luz até os cantos mais sombrios do meu ser. Sentei-me, então, a esperar, escondido naquela plantação singular, exposto àquele céu inconstante. Sinto cheiro de Chardon.” (Fernanda Pacifico)

     A noite já se adensava quando eu montei a barraca. O céu não estava negro, e sim azul escuro. Tão limpo que poderia inebriar a mente de qualquer um. Foi nesta hora que Artur voltou.
     A luz da lua cheia brilhava e iluminava o campo, eu afinava a mira do telescópio quando ele pôs a mão em meu ombro e me virei para olhá-lo. Foi um momento de epifania.


     “Ao me virar foi inevitável fixar meu olhar naqueles olhos azuis vívidos que fielmente lembravam a cor do céu em dias claros, seus cabelos eram loiros, estavam presos em um rabo, brilhavam e me davam uma vontade louca de tocá-los. Apesar da noite fria, parecia não sentir frio, estava de calça e vestia uma camiseta. Camiseta essa que realçava seu corpo, natural, mas definido. Sua postura viril me atraía de alguma maneira, tinha um ar imponente e isso fazia com que meus olhos continuassem fixados nele, àquele sorriso, àqueles olhos.. A soma de tudo que via em minha frente me passava uma sensação. Sensação essa que me atormentava, me instigava, me entusiasmava. Meu coração acelerou, minhas bochechas coraram. Eu me estremeci por dentro...”
(Letícia Ribeiro)

     -Você quer tomar um chá enquanto esperamos?
     -Claro. - Respondi quase sem palavras.
     O rapaz se abaixou ao lado, pôs duas xícaras no chão e as encheu com chá.
     -Só não trouxe de chardon porque não agüento mais tomar só isso. Eu trouxe chá de jasmim, espero que goste.
     -Claro. Deixa eu só terminar esse ajuste aqui... Provavelmente nem precisaremos usar o telescópio, o céu esta tão limpo que nos poupa desse aparato... Pronto.
     - Então... Sente-se, acho que ainda vamos ter que esperar um pouco por essa chuva, não?
     - Claro! – me assentei ao seu lado de onde podíamos olhar o céu. – Eu não sei direito que você faz aqui Artur. Como que você trabalha?
     - Eu cuido da plantação e do gado. Como meu pai está sempre trabalhando nas universidades eu que sou o mais velho sobrei pra isso... Mas estudei, sou biólogo botânico.
     - Que interessante... Mas você gosta de ficar aqui na fazenda?
     - Acho um fim muito mais útil pra meus conhecimentos ficar com as plantas que com os homens. Eu fiquei cinco anos numa faculdade pra aprender sobre plantas e nem passar perto delas?
     Não sei o porquê, mas quanto mais conversava com esse homem, mais me sentia atraído por ele... Foi nesta hora que senti sua mão pegar na minha. Ele se deitou e eu fiz o mesmo. Ele ficou apenas olhando o céu, e eu desnorteado o admirando. Sei que nada mais fazia o mesmo sentido, estava me envolvendo com o filho do meu professor.
     Nesta hora eu preferi esquecer de tudo que do mundo lá fora me acometia. Apenas me reduzi a viver o presente e admirar o céu.
     - Que pensez-vous d'une balade à cheval? – Disse o jovem, que se ergueu com pressa e me soltou, indo rápido para o estábulo e voltando com um cavalo preto lindo. Subiu nele e me estendeu a mão para que subisse. Não hesitei, subi e montei logo atrás de Artur, que pegou meus braços e os pôs envolvendo sua cintura.
     Com três beijos ele pôs o cavalo a galopar por sobre as trilhas do campo. Como montávamos o cavalo a pelo, foi impossível que eu não me sentisse escorregar, então abracei Artur firme, colocando minhas mãos em seu tórax. Não havia reparado o quanto ele era forte. Seu corpo era quente e começou a me atrair de tal forma que não pude evitar. Quando vi já estava recostado sobre seu ombro, ludibriado, vendo a paisagem linda da madrugada que passava por nós. O cosmos perfeito imperava no céu... Era perfeito demais pra eu acreditar...


     “É um céu cravejado de brilhantes, estrelas brancas perfurando o azul contrastante, e uma lua, pérola dantesca, a se destacar entre as estrelas burlescas. Quem sabe nesta noite luminosa, venham sobre mim inebriarem nebulosas a me fazer lembrar de cores esquecidas, das formas e brisas desconhecidas. Sem fim, azul eterno e libertador, a me distrair e acolher em seu esplendor...” (Vanessa Pazze)

     Cavalgamos, algo que pra mim foi como horas, até que ele parou com o cavalo no mesmo ponto de onde havíamos partido. Ele soltou o cavalo, para que este descansasse, e veio ate mim. Pegou minha mão e fomos andando e falando rumo à barraca onde íamos ver a chuva de meteoros, chuva essa que por pouco não me esqueço...
     - Então, Alastus... – Disse Artur. – Você é... Como falar... Você já ficou com um homem alguma vez?
     - Bem... Eu nunca tive nada físico com outro homem não, mas sempre me interessei por eles, assim como por mulheres. Sempre achei que esse assunto de amor não tem nada haver com o sexo da pessoa, só com o coração.
     - Eu gosto mais de homens... Mas para ser franco, hoje eu gosto mesmo é de você... – O rosto do jovem Artur se fez vermelho, púrpura. Sorriu tentando disfarçar o constrangimento, mas eu não pude deixar de notar que ele tinha muito medo do que eu ia falar a seguir. Sem muito medir, soltei sua mão e o abracei pela cintura, mantendo meu corpo a curta distância do dele.
     - Eu também estou gostando de você, sabia... Não sei o que deu em mim para não ter te notado antes, garoto. Eu estou muito feliz de que você também sinta isso.
     E dizendo isso eu olhei em seus olhos e comecei a me aproximar. Subi minhas mãos por sua coluna, elevando-as até a altura de sua nuca. Eu aproximei meu rosto do dele, passei minha mão por seus cabelos. Primeiro, apenas um toque, mas depois eu beijei finalmente sua boca, em um beijo cândido e romântico, em um beijo do tipo que purifica a alma de qualquer um. Ele permaneceu estático por mais alguns instantes, mas logo cedeu. Também passou a mão por minhas costas e me apertou forte contra seu peito. Foi como se tudo o que ele sentia, desejava e escondia, surgisse em sua frente naquele momento.
     Não conseguimos parar de nos beijar, acabamos ambos abraçados no chão, arrancamos as camisas um do outro. Nos beijávamos ardentemente. Ele passava a mão por meus cabelos e eu deslizava as minhas por seu peito. Mas antes que algo a mais pudesse acontecer, uma luz cortante passou por nós, era o primeiro meteoro daquela tão esperada chuva.
     Artur parou por um estante e sorriu para mim. Eu olhava pra seus olhos, e ele nos meus. Mais um breve beijo, seus cabelos tombados sobre meu rosto e ele me diz:
     - Então. É a primeira estrela cadente. Espero que já tenha um pedido, pois eu tenho o meu.